Por: MARIA VIRGÍNIA BOSCO
Gertiatra e escritora
São Paulo
Enquanto as águas subiam a vida, emergia, às claras, a
sociologia castigada dum tempo apoteótico e esquecido.
Cena um:
Na marginal do rio transbordado, bem ali nas ilhas dos
milagres, a natural arreflexia da
percepção, própria da nona década de vida (noventa e dois anos!) olhava atônita
para a cena das águas que carregavam o seu automóvel inundado.
Alguém lhe perguntou na entrevista, ao tal senhor que por
um triz não submergiu a vida em pleno asfalto:
"Mas o senhor estava dirigindo, o que ocorreu com o
senhor?"
E a resposta: "eu não sei, eu não vi, eu não percebi
que a água subia e, de repente meu carro inundou".
"O senhor está bem?"
Cena dois:
Uma senhora, final da oitava década do sufoco da vida,
dava graças a Deus por, com as águas pelos joelhos, ainda ter as paredes em pé,
as da sua suada casinha conseguida com o esforço familiar duma vida toda,
soerguida numa área de risco iminente.
Então, ela apenas argumentou feliz por estar viva e
saudável, frente à pergunta que lhe sugeria se ela não precisaria sair dali:
"mas moço, não é sempre que isso acontece: eu não
tenho para aonde ir, eu gosto de morar aqui sozinha!".
"A senhora está bem?".
E poderiam ser cenas mil que nos fazem ao menos repensar
como chegam através do tempo nossas crianças, nossos declamados idosos, enfim,
nossas vidas no seio da ATUAL sociedade que construímos, dizem, com as nossas
mãos.
A pergunta de sempre: se não for pelo bem estar e pela
dignidade das pessoas... então, seria pelo quê?
O que seria mais importante que VIDAS?
E logo mais todo o asfalto inundado dará passagem ao abre
alas das nossas histórias inundadas de descaso pela folia que amortece as dores.
Por aqui, com ou sem Carnaval, somos os atores dos nossos
dignos caos, somos todos mestres-salas das dores e porta-bandeiras das causas
gritadas... mas, perdidas.
Somos os protagonistas dos nossos enredos surreais, embora,
no real nossos melhores sonhos sociais não façam parte deles.
Por aqui...
Quem, de fato, se importaria com o cáustico desfile de
todos os dias, esses pelas passarelas das nossas vidas tão esquecidas, as que
correm pelas deterioradas avenidas, todas rumo à apoteose dos tempos invisíveis?
Então, nada mais nos resta senão desfilar.
Preparemos as baterias e acionemos nossas vozes altas em
meio a todos os surdos, porque nossos Carnavais inaudíveis têm que continuar.
Maria Virgínia Bosco
Médica geriatra e cardiologista
Email: mavibosco@hotmail.com
Recanto das Letras: https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=11196
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