05 setembro 2014

Ruptura e reinvenção: o que Rimbaud tem a nos ensinar sobre o ato

Por 
LUCIANA BRANDÃO CARREIRA
Psicanalista, Professora e Escritora
Belém - PA
lucianabrandaocarreira@gmail.com




RUPTURA E REINVENÇÃO: 
O QUE RIMBAUD TEM A NOS ENSINAR SOBRE O ATO

À une raison
Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous
les sons et commence la nouvelle harmonie.
Un pas de toi, c’est la levée des nouveaux hommes
et leur en-marche.
Ta tetê se détourne: le nouvel amour!
Ta Tetê se détourne – le nouvel amour!
“Change nos lots, crible les fléaux, à commencer
par le temps” te chantent ces enfants. “Elève
n’importe où la substance de nos fortunes et de
nos voeux” on t’en prie.
Arrivée de toujours, qui t’en iras partout.
Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud.

À uma Razão
Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos 
os sons e dá início a uma nova harmonia.
Um passo teu recruta novos homens,
e os põe em marcha.
Tua cabeça se vira: o novo amor! 
Tua cabeça se volta, – o novo amor!
“Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar
 pelo tempo”, cantam estas crianças, diante de ti. “Semeia 
não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te. 
Chegada de sempre, que irás por toda parte.

Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud (tradução livre da autora).
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Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud começou a escrever o livro Illuminations em 1873, quando estava prestes a completar 20 anos de idade, enquanto percorria a Bélgica, a Inglaterra e toda a Alemanha, ao lado de seu amante, o também poeta Paul Verlaine.

Ao meio de muito haxixe, álcool, violência e escândalos, Rimbaud também chocava a sociedade com a sua homossexualidade. E, quando encerra a obra citada, o escritor se afasta da literatura por quase dez anos, entrando numa espécie de exílio voluntário, deixando o Ocidente ao partir para uma vida no deserto da Etiópia e do Egito.

Finalizado em 1875, tal livro é composto por pequenos textos (prosas, em sua maioria), parecendo desprovido de tema, tamanha a liberdade com a qual o poeta o concebera. Talvez por esse motivo o escritor tenha denominado os anos nos quais escrevera Illuminations como um período de “desregramento de todo o sentido”.

Jean-Michel Espitallier considera Illuminations como a primeira compilação de videoclips da história, “rodada” vinte anos antes do nascimento do cinema e um século antes dos primeiros clips televisuais. Considerados por tal crítico como “prosas rasgadas”, tais textos parecem surgir de uma urgência furiosa de Rimbaud em reproduzir com palavras as cenas do mundo que o capturavam, registradas em seus versos tal como se a escrita jorrasse dos olhos fotográficos de um jovem homem apressado. Esse caráter faz que Jean-Michel Espitallier considere o seu “modelo de poema em prosa” como tendo sido o pioneiro – o verdadeiro pioneiro”, “inventado” quarenta anos antes do que se estima ter nascido com Bertrand, tendo influenciado, enfim, muitos dos grandes poetas do século dezenove, dentre os quais, Baudelaire.

Em Rimbaud a prosa não visa à narrativa. O enredo, este se precipita sobre zonas visuais, consideradas pelo próprio Rimbaud como “fotografias do tempo passado” – como a grafia de um instante tão infinitamente fugaz que a escrita dele suscitada é simplesmente a memória de um átimo que não se deixa apreender.

Rimbaud inaugurou-se na poesia extremamente jovem, escrevendo em Latim aquilo que foram os seus primeiros versos, apenas quatro anos antes do Illuminations. Trazendo a luz para o título com o qual ele nomeou tal obra – utilizando-se de uma palavra que, em inglês, quer dizer “gravuras coloridas” – Rimbaud então vincularia sua poesia à ruptura e à reinvenção, definitivamente, desestabilizando assim o pilar racionalista do pensamento francês. Deste livro pinçamos o curto poema em prosa À une raison, tantas vezes citado por Lacan ao longo de seu ensino. Por que o fazemos? Porque no contexto em que surge, esse texto nos permite apreender o giro discursivo, enquanto efeito de linguagem, que se opera na passagem de um discurso a outro, em cujas bases encontramos o amor que enlaça. Afinal, ao desestabilizar o racionalismo francês, Rimbaud aponta que o Eu não é senhor de seus atos, indicando que há uma suspensão do Eu no ato da criação, liberdade à qual todo artista está condenado.

Entusiasmado pela Comuna de Paris, lembremos que o poeta francês parecia ansiar por uma nova ordem social, esperançoso que estava por uma renovação da sociedade e de seus costumes, que seriam alcançadas por via de uma revolução. Contudo, podemos dizer que o texto À une raison anuncia uma outra espécie de revolução; reviravolta que convoca o homem, em sua marcha pelo mundo, a semear o desejo por onde quer que ele passe. A nosso ver, o poeta convida e estabelece uma torção no eixo do amor num sentido ainda mais radical, tal como Lacan a propôs ao discorrer sobre o Novo amor em seu seminário Mais, ainda (1972-1973), pois, para Lacan, o Novo amor nada mais é do que o signo da emergência de um novo discurso, indicando um novo laço social, inédito e original. Disso decorre a passagem do discurso da histérica ao discurso do analista, no final de análise, quando um amor novo no laço psicanalítico se estabelece. Ao acompanharmos os passos do poeta, bem como os de Lacan, encontramos assim o desejo de semear o desejo.

Pouco antes, em seu seminário sobre O ato analítico (LACAN, 1968-1969), foi também a partir desse poema, no qual um Novo amor é evocado, que Lacan propôs a fórmula do ato, uma vez que o ato analítico suscita o novo, um novo desejo, um novo amor transferencial. Na imprevisibilidade de um encontro com o Real, eis a essência do desejo do analista: transmitir o intransmissível de uma experiência limite (o Real inapreensível pelo significante) que provoca um giro discursivo e uma ruptura no saber, pois “o intransmissível está no coração do desejo de transmitir” (PORGE, 2009, p.15). Afinal, como Rimbaud persevera em seu verso, basta “Um toque do dedo no tambor” para que se desencadeiem “todos os sons” e se inicie “uma nova harmonia”; basta “um passo” para que se recrutem novos homens e estes, a partir daí, enveredem por esta nova trilha. Rimbaud associa o novo ao movimento capaz de mudar destinos e direções, reinventando caminhos, e, mais importante, semeando o desejo ao longo dessa errância pelo mundo afora. 


Mas de que maneira Lacan trabalha a partir desse poema no seminário Mais, ainda (1972-1973)? 

Para acompanharmos os desenvolvimentos de Lacan em tal contexto, situemos, em primeiro lugar, que todo amor é narcísico. Os laços sociais, que são laços amorosos em sua essência, propiciam toda sorte de fenômenos imaginários de massa, uma vez que se pautam em ideais identificatórios do eu. 

A rede discursiva é tecida por esses fios, ainda que o amor, que faz laço, demande simplesmente o amor. Mas o amor é impotente, pois a relação complementar entre os sexos é impossível, uma vez que, havendo reciprocidade, tal amor é guiado pelo desejo de fazer unidade, própria ao amor fusional que aliena. Ao indicar que o seu aforismo “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” não é do campo da linguística, e sim da linguisteria, eis então que Lacan avança, circunscrevendo uma modalidade amorosa nova, própria ao seu discurso. 

Ainda que o amor seja um signo, Lacan circunscreve, assim, que o amor de que se trata é signo de uma mudança discursiva. Lacan pouco a pouco vai delineando uma modalidade de amor que não é alienante, e que tampouco escraviza. Amor que está num mais além do narcisismo, capaz de romper e esvaziar as identificações imaginárias. Um puro amor. Amor que é pura potência criativa, inovadora, que nos “constrange a decidir uma nova maneira de ser”, como bem estabelece Alain Badiou ao se referir ao que é da ordem de um acontecimento. (BADIOU, 1993, p.38). Logo, o gozo do Outro não é, em absoluto, um signo do amor. Ao contrário, o que é signo de amor é a torção que aí se produz, no lugar onde tal gozo é vislumbrado e entrevisto.


Sendo assim, a “razão” sobre a qual Rimbaud se refere em seu poema À une raison é signo de um novo amor, pois “o amor, nesse texto, é o signo, apontado como tal, de que se troca de razão, e é por isso que o poeta se dirige a essa razão. Mudamos de razão, quer dizer – mudamos de discurso”. (LACAN, [1972-73] 1985, p.26).

Pois bem, dito isto, voltemos a Rimbaud uma vez mais.

Apontando ao que se opera na emergência de um novo laço social, Rimbaud sacode as bases do racionalismo cartesiano, subvertendo-o, uma vez que, ao invés de louvar uma racionalidade amparada na razão, ao contrário, Rimbaud se dirige, nesse poema, a uma Razão que é de outra ordem. (BRUNEL, 2004, p.218).

Numa de suas cartas endereçadas a Paul Démeny, Rimbaud deixa clara a sua discordância em relação ao “penso, logo sou” cartesiano, propondo, em contrapartida, a máxima “Eu é um outro”. Para ele, a fórmula “Eu penso” é um grande engodo, pois considera que, ao invés disso, o que se passa na verdade é da ordem de um “Pensam-me”. Ou seja, o Eu, – diz Rimbaud antes mesmo que Freud o faça –, é pensado por um outro. 

Mas apesar de todos esses elementos listados, compartilhamos da ideia de que a razão cantada nos versos de Rimbaud não equivale à descoberta freudiana do inconsciente; assim, sua “razão poética não é nem o senso cartesiano nem o inconsciente freudiano”. (BERNARDES, 2009, p.102).

De todo modo, o fazer poético, próprio ao ato do poeta, desvela que o material com o qual o poeta trabalha, – ao esbarrar no gozo do sem-sentido que se infiltra em Lalangue –, é o mesmo do qual o inconsciente se serve. Território do desconhecido onde a razão não tem vez, justamente porque o sentido aí se desfaz, constrangendo o artista e impelindo-o a fazer algo com isso que lhe escapa. 

Seja como for, Rimbaud rompeu com as formas clássicas da poesia metrificada e versificada, reinventando a lógica e a sintaxe, inaugurando uma nova maneira de fazer poesia. Fazer poético que muito nos lembra o trabalho operado por Clarice Lispector, cuja potência subverteu o campo literário, reinventando-o, enquanto signo de um novo amor que fez emergir um laço novo; um novo laço social que aflora enquanto acontecimento de discurso, efeito do encontro com o Real.

Acontecimento que impulsiona uma torção na ordem vigente, de maneira imprevista, determinando um novo começo, novamente. Fruto de um amor que é pura contingência, capaz de transformar nossos destinos, como bem profetizou Rimbaud.
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BIBLIOGRAFIA:
FORESTIER, L. Oeuvres complètes/correspondance. Paris: Robert Lafont, 2004.
BADIOU, A. L´étique; essai sur la conscience du Mal. Paris: Hatier, 1993.
BERNARDES, A. Um amor reinventado: a arte do poeta e o discurso do analista. In. MELLO, M e JORGE, M. (org). Psicanálise e Arte: saber fazer com o Real. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2009, p. 99-107.
BERNARD, S. Rimbaud et la création d´une nouvelle langue poétique, in Le poème em prose de Baudelaire à nos jours. Paris: Nizet, 1959.
BRUNEL, P. Éclats de violence; pour une lecture comparatiste des Illuminations d´Arthur Rimbaud. Paris : José Corti, 2004.
LACAN, J. (1968-69) O ato analítico. (Seminário inédito)
LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
PORGE, E. Trasmettre la Clinique Psychanalytique – Freud, Lacan, aujourd’hui. Toulouse: Éditions Érès, 2005.
PORGE, E. Transmitir a clínica psicanalítica. Tradução: Viviane Veras e Paulo Souza. Campinas, S.P: Editora da Unicamp, 2009. 
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