20 outubro 2014

Envelhecer e morrer (experiências necessárias)

Por 
MÁRCIO RIBEIRO LEITE
Médico e escritor
Salvador - BA
dr.biboleite@yahoo.com.br








ENVELHECER E MORRER (EXPERIÊNCIAS NECESSÁRIAS)

Tomando como ponto de partida este excerto do romance “O Momento Mágico”, que aborda a questão da morte no hospital, portanto, distante do ambiente familiar, do aconchego dos entes queridos, podemos inferir o absurdo nível de angústia gerado por uma situação como essa. Além de questões idiossincrásicas – uma vez que a morte advém a cada um de nós em momentos distintos de nosso desenvolvimento pessoal e de maturação de tal questão – há a sobrecarga imposta por nossa (social) visão imatura e prepotente do fenômeno. Portanto, há o componente interno ou pessoal, e o componente externo ou não pessoal, relativo ao ambiente ou cultura, como motores dessa angústia. Claro, ambos estão ligados, são interdependentes, mas, absolutamente, não são congruentes.


O Ego médico, ampliado no sentido de abarcar toda a equipe de saúde, é cunhado com a determinação de ver na morte o sinal inequívoco de derrota de nossos dispositivos artificiais de manutenção da vida. Antes da morte, a própria velhice, embora inexorável, já é vista, em uma cultura onde predominam valores da juventude, como decadência e inadequação. O mundo, todo projetado para os arroubos, movimento e ritmo dos jovens, passa a ser um local não adaptado aos velhos, com sua característica cadência. Isso tão somente contribui para a sensação de inadequação e alienação dos idosos, que se acham extemporâneos, anacrônicos, com o avançar da idade e a perda progressiva de seus referenciais de mundo e época. As mudanças em seu entorno, a perda dos amigos, parentes e amores mais significativos, a perda de hábitos e condicionamentos que delineavam uma forma particular de existir, forçam o idoso a uma readaptação difícil e quase nunca executada a contento. Mais e mais ele vai percebendo a desconfiguração de seu habitat, de suas referências existenciais, o que em muito contribui para a sensação de vazio, de alheamento, dos últimos anos.

O idoso, forçosamente e com sofrimento, vai descolando-se da vida, desmotivando-se, mais ou menos ciente de que esse é um processo inevitável e que ele não pode controlar. Muitas vezes há patéticas tentativas de se permanecer jovem, “ligado”, “por dentro”, “in”, como diriam os jovens em suas mutáveis gírias. Numa visão comum e tingida de preconceitos silenciosos, envelhecer é falência, decrepitude, prenúncio de morte. No mais das vezes, a velhice está associada a dores, limitação e doenças. Hoje sabemos que não necessariamente é assim, há alternativas, mas fatalmente resvalamos para o ideário popular que ainda pinta o envelhecer com tons sombrios. O idoso, portanto, sente-se em situação de desvantagem, de desmerecimento, de desconstrução, o que, por si só, dificulta a caminhada. Torna-se irresoluto, tímido, vacilante, pois ciente de sua fraqueza. E já que ossos e músculos não lhe correspondem às expectativas, deve restar-lhe a lucidez, a maturidade, o equilíbrio, o intelecto.

Aos homens e mulheres mais maduros cabem grandes obras de peso intelectual. Há que se viver uma longa vida para atingir os “mistérios”. Refiro-me à sabedoria da existência disponível aos que percorreram longos caminhos. Refiro-me ao resgate do simbolismo do arquétipo do velho sábio, centrado, conselheiro, que tem as respostas para a ânsia da juventude, conhecedor do “elixir da longa vida”, se não da vida física e destrutível, daquela outra verdadeira e imortal. Devemos cooperar para atrair ao nosso pool de crenças e experiências culturais a vivência do velho sábio, à moda de muitas culturas arcaicas, mais intuitivas e espiritualizadas. Sem abominar o mundo à nossa volta ou as inequívocas conquistas materiais, sem a necessidade de meditar por anos em uma caverna no Himalaia, podemos “despertar” para a multifacetada realidade interior, com muitos personagens ávidos de vivificação e experiências por realizar. Um mundo vastíssimo, tão real quanto o universo ponderável à nossa volta, e muito mais acessível aos idosos, ou a qualquer um que se disponha a essa comunicação com o Self (Alma).


Para essa aventurosa descida ao mundo interior não são necessários ossos e músculos em plena forma, é factível a qualquer um, incluindo velhos e enfermos. Cada qual pode realizar essa jornada a seu modo e a seu tempo, numa tentativa de reencontro consigo mesmo, de revitalização das verdades essenciais da vida, em contraste com as ilusões criadas pelo Ego ao longo da estrada.

Envelhecer e morrer, experiências inevitáveis, não passam de curso preparatório e adestramento para nova percepção de existir, nova forma de viver, dentro de conceito simbólico, muito mais amplo e satisfatório do que a mera concepção biológica de vida. Não importam as nossas diferentes ideologias, filosofias ou religião, todos podemos atingir conceitos mais amplos do significado da vida e de sua contrapartida, a morte. É possível, pois, se não criar, recriar uma imagem menos distorcida e mais favorável do envelhecer, ligando-a a ricas e respeitáveis vivências, retirando de sobre ela o fardo das associações pejorativas.


É possível também desvincular o envelhecer da ideia de decadência, agregando o conceito de transformação, transmutação, adaptação, a uma noção de vida muito mais vasta, ainda que subjetiva e simbólica. Ao ter reverência pelo passado, o idoso segue em direção ao futuro, mais confiante e seguro de si, compreende que passa por experiência que transcende sua realidade particular. Ao mesmo tempo, segue desvelando sua singularidade. Sem a visão míope que envolve a morte, denominador final comum do envelhecer, esta não deverá ser corolário de dores e sofrimento, mas de júbilo pela sensação de missão cumprida e satisfação pela obra realizada, ainda que sempre parcial.


A morte configura-se, portanto, como uma etapa a mais na escalada da vida, não como seu contraponto, nem como seu inexorável término. Envelhecer, morrer, como em toda e qualquer espécie animal ou vegetal, até mesmo como em qualquer material fisico-
-quimicamente constituído, são etapas vitais. O homem que chora a morte de um ente querido, por admiti-lo perdido em definitivo, traz-me à mente a imagem da criança pequena que se desespera ao ver a mãe sair para o trabalho. Fazendo referência a James Hillman, idealizador da Psicologia Arquetípica, infiro que o arquétipo do jovem e do velho (Puer e Senex) sejam exatamente o mesmo, em diferentes polaridades, assim como, em essência, somos sempre a mesma pessoa, quer estejamos situados em um polo ou outro da vida, ou seja, quer estejamos em uma extremidade ou outra do arquétipo, buscando aqui apenas o entendimento com uma metáfora espacial. A jornada em direção ao futuro desconhecido deve ser tranquila e despojada, quando entendida não como perda de juventude e vigor, mas como ganho de experiência, vivência e despertar de sensibilidades.

O caminho é menos íngreme quando assumimos o envelhecer (e morrer) como uma experiência transpessoal, absolutamente necessária e lógica, algo, como não poderia deixar de ser, plenamente inserido na engenhosidade e propósitos da Natureza, ainda que nem sempre inteligíveis sob os limites de nossa tridimensionalidade. O envelhecer, muito além de simples contar de dias em direção à morte, vivência de Chronos (tempo cronológico, quantitativo), pode e deve tornar-se uma vivência Kairós (tempo qualitativo, tempo oportuno). Sem referência à mitologia, quero dizer que a vida pode ter uma relação difícil com o tempo (Chronos), em que nos posicionamos fora do momento presente, do aqui-e-agora, estamos em conflito com ele; ou podemos fluir com o tempo, ser o próprio tempo, fundir-nos nele, o que torna a contagem dos dias absolutamente desnecessária e a ação dele sobre nós algo perfeitamente aceitável e indiscutível, portanto, totalmente integrada à nossa natureza.

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Leia:

O MOMENTO MÁGICO
Márcio Ribeiro Leite

Editora Record

http://www.livrariacultura.com.br/



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