HELIO MOREIRA
Médico e escritor
Goiânia - GO
drhmoreira@gmail.com
COMO ELES, OS ESCRITORES, DESCREVEM OS AMBIENTES
O narrador de um texto literário, principalmente do romance, pode, dependendo do desenvolvimento da ação e, principalmente da intenção do autor, se colocar como participante ou um mero expectador privilegiado que conhece o terreno que o personagem está pisando.
A descrição do ambiente onde se desenrola a ação pode definir a capacidade de comunicação entre o autor e o público ledor; se houver descrição pormenorizada de detalhes, poderá se tornar cansativa com a consequente descontinuidade da leitura, porém, se for muito econômica, poderá não transmitir a ideia que o autor tem em mente.
A arte está na capacidade de, ao narrar, o autor deixar, nas entrelinhas, possibilidade para o leitor completar os detalhes, de acordo com a sua sensibilidade e, principalmente, sua imaginação; em outras palavras, ele “ajuda” o autor a escrever o livro.
Machado de Assis sabia, como ninguém, a arte da narrativa; suas frases são curtas, diretas, pouco adjetivadas, tomava fôlego na construção da sentença, com o abusivo (abusivo?) uso da vírgula.
Vejam comigo esta descrição de ambiente encontrado no seu romance “Quincas Borba” (início do capítulo III); o narrador (Machado de Assis), espírito bisbilhoteiro, por conhecer os costumes da época, brinca com o personagem (o novo rico Rubião), que passou a viver em um mundo que não era o dele:
“Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara e, enquanto lhe deitava açúcar, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. Prata, ouro, eram os metais que amava de coração; não gostava de bronze, mas, o amigo Palha disse-lhe que era matéria de preço, e assim se explica esse par de figuras que aqui está na sala, um Mefistófeles e um Fausto. Tivesse, porém, de escolher, escolheria a bandeja, - primor de argentaria, execução fina e acabada”.
Outras vezes o narrador usa um ambiente já seu conhecido e tenta transformá-lo, pela necessidade da ação, como se estivesse no remoto passado de mais de cem anos atrás, utilizando-se da criatividade ficcional (Couto de Magalhães, o Último Desbravador do Império, Ed. Kelps, Hélio Moreira); para que os leitores entendam a dinâmica da cena, o autor do livro morou durante algum tempo em Londres no ano de 1972 em uma típica residência londrina, a descrição que lerão no livro (p.130) corresponde à sala de espera daquela casa, com algumas poucas modificações, consentâneas com pesquisas bibliográficas, para adaptar ao ano de 1876, quando Couto de Magalhães chegou a Londres:
“Foram minutos de enervante expectativa, Couto aproveitou para folhear alguns papéis que estavam dispostos sobre uma pequena mesa de centro, colocada bem próxima da poltrona onde ele se alojara.
A sala onde ele estava era ornada por um mobiliário que, absolutamente, não pecava pela extravagância; duas ou três poltronas de couro preto, dois elegantes e vistosos pares de cadeiras de espaldares altos com assento em palha, um grande relógio carrilhão, duas ou três gravuras expostas nas paredes, que, aliás, eram recobertas por um papel com cores discretas, ao invés da tradicional pintura.
Um grande cabide, um porta-chapéus e um porta-guarda-chuvas se localizavam nas imediações da porta de entrada; completando o conjunto, podia-se ver um banco de madeira de cor escura, definindo, em quase todas as residências londrinas, como sendo o local para se colocar o sobretudo; o assoalho era todo atapetado, dando ao ambiente um requinte que poderia ser superponível ao da nobreza”.
Destaco agora um trecho de “A Prima Bete”, inserido no conjunto da “Comédia Humana”, provavelmente, um dos mais importantes romances de Honoré de Balzac, pois foi escrito em sua fase de maturidade literária; no seu 1º. Capítulo, o personagem Crevel (oficial da Guarda Nacional) examinava o mobiliário do aposento onde se encontrava, enquanto aguardava a chegada da baronesa, com quem viera tratar de negócios: casamento.
O leitor, pela descrição do ambiente, consegue descobrir a situação financeira da dona da casa e do oficial.
“Observou as cortinas de seda, primitivamente vermelhas e já arroxeadas pela ação do sol, puídas nas pregas por longo uso: o tapete desbotado; os móveis desdourados, cuja seda, muito gasta, apresentava manchas; e expressões de desdém, contentamento e esperança se sucederam ingenuamente na cara larga do comerciante enriquecido. E ele se mirava ao espelho colocado em cima dum velho pêndulo do Império, procurando compor-se quando o roçagar do vestido de seda anunciou a entrada da baronesa. O capitão assumiu então uma posição conveniente.
Sentando-se num pequeno sofá, que certamente fora muito bonito há 40 anos, a baronesa indicou a Crevel uma poltrona, que, na extremidade dos braços, tinha cabeças de esfinges bronzeadas, cuja pintura, entretanto, estava escamada, a ponto de deixar ver a madeira. Convidou-o a sentar-se”.
Madame Bovary, de Flaubert, é um marco do romance descritivo; o autor é minucioso nas descrições dos ambientes, porém, não é enfadonho.
No início do capítulo VI, há uma maravilhosa descrição da Vila, vista por Emma, na voz do narrador:
“Uma vez, quando a janela estava aberta e ela sentada no peitoril, ouviu o Ângelus. Era o início de abril, quando as primaveras se abrem; um vento morno rola nos canteiros lavrados e os jardins, como as mulheres, parecem enfeitar-se para as festas do verão. Por entre os barrotes do caramanchão e ao redor, mais além, via-se o rio na pradaria que desenhava na relva sinuosidades vagabundas”
Parece que, também, vemos a paisagem com os olhos de Bovary.
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