04 junho 2014

Meu último estágio

Por 
ANIENNE NASCIMENTO
Médica Infectologista      
Maceió - AL
anienne.petrus@gmail.com







MEU ÚLTIMO ESTÁGIO

De repente a médica, prestes a se formar, foi parar do outro lado, num leito de UTI. O que ela testemunhou nos mostra uma imagem comovente e intrigante da fragilidade do ser humano...


Em 1995 eu estava terminando o curso de medicina. Lembro bem que no último dia de aula saímos para comemorar nossa vitória. Enfim tínhamos terminado. Apesar de cansados e desgastados, estávamos felizes e orgulhosos. O que eu não sabia era que ainda faltava um estágio a cumprir.

Ao chegar em casa naquela noite, eu não estava me sentindo muito bem. Sou diabética tipo 1 e havia descoberto esse diagnóstico há alguns anos. Nos últimos meses eu tinha me descuidado mais do que devia. Isso era compreensível, pois andava cheia de preocupações e apreensões, tinha que terminar o TCC, estudar para as últimas provas, organizar a festa, afinal fazia parte da comissão de formatura e tantas outras coisas...

Meu pai saiu comigo na madrugada para me levar ao hospital. Dessa parte não lembro quase nada, só lembro que na sala de espera ele ia e vinha com copinhos cheios d’água que eu engolia avidamente. Minha sede era intensa, eu estava bastante desidratada, com uma cetoacidose diabética grave.

Apaguei...

Alguns dias depois acordei na UTI. Ao ver meu endocrinologista lá, provavelmente escrevendo a minha evolução e/ou prescrição fiquei morrendo de vergonha, com uma vontade enorme de me esconder no leito. Tentei me iludir, talvez ele não tivesse me visto. Não queria que ele soubesse que era eu quem estava ali daquela forma. Será que lembrava de mim? Fazia tanto tempo que eu não retornava para uma consulta. Será que havia me reconhecido? Mal sabia que ele estava ali exclusivamente por minha causa, já há vários dias. Minha família tinha acionado sua assistência e agradeço a bendita oportunidade de ser paciente desse médico, que é humano acima de tudo e que salvou minha vida tanto por competência profissional, como pelo carinho e dedicação.

Após a internação eu evoluí com uma série de complicações. No momento em que ia ser entubada, a médica intensivista constatou um edema de glote e precisou me submeter a uma traqueostomia de emergência. Percebi que respirava através de um ventilador que soprava oxigênio dentro dos meus pulmões, mesmo que eu não quisesse. Aquela situação era extremamente desconfortável, além do mais, eu não podia falar. Imagina o que é isso?

Experimentei ainda o que é ter um cateter numa veia central e também uma veia dissecada pela necessidade de medicações. Apresentei insuficiência renal aguda que me tornou tão inchada que eu mais parecia uma obesa mórbida. Pior foi ter que passar pela diálise peritoneal e depois pela hemodiálise, já que a primeira não foi suficiente.

Poderia listar uma enormidade de coisas pelas quais vivenciei, mas não vejo necessidade. O que escrevi foi suficiente para demonstrar essa experiência e o quanto precisei lutar bravamente pela vida.

Notei que já era querida naquele espaço e que todos me conheciam e me tratavam com carinho, apesar de eu não saber quem era nenhum daqueles seres amorosos conhecidos como técnicos(as) de enfermagem e que depois se tornaram amigos. Lembro também dos(as) enfermeiros(as); fisioterapeutas; profissionais da limpeza e tantos outros que trabalhavam, enquanto acompanhavam e torciam pela minha recuperação.

Depois vim a descobrir que todos os dias, nas horas da visita ou não, o lado de fora da UTI se encontrava sempre repleto de colegas, amigos e familiares que desejavam saber sobre mim. Foi necessário tampar uma janelinha de vidro que lá havia, pois isso estava causando tumulto, já que todo mundo queria me ver. Mergulhada nessa dor imensa, senti-me amada como nunca...

Após quase um mês, finalmente recebi alta da UTI. Fui para o quarto, mas meu estágio ainda não tinha terminado. Apresentei uma recaída. Não tenho condições de descrever o que estava externo a mim naquele momento, nem como tudo aconteceu, mas posso e quero descrever o que estava interno, o que acontecia dentro de mim...

Eu sentia como se estivesse atravessando um ciclo dividido em três partes. Essas partes não eram todas do mesmo tamanho. A “primeira parte do ciclo” ocupava um espaço/tempo de aproximadamente quarenta e cinco por cento deste. Nela eu não via nada. Eu estava na escuridão, com uma sensação de opressão e um aperto muito forte no peito, que me fazia querer correr dali.

Sem muito esforço eu passava para a “segunda parte do ciclo” que ocupava um espaço/tempo de aproximadamente dez por cento. Eu tinha a impressão que era como uma ponte que me levava de um “lugar” para “outro”.

Ao ultrapassar a pequena ponte eu chegava na “última parte do ciclo” que também ocupava um espaço/tempo de quarenta e cinco por cento. Ali eu era tomada por uma sensação de gozo. É difícil descrever. A comparação mais próxima que posso fazer é com um orgasmo, só que este da forma que conhecemos é fugidio, fugaz, enquanto que aquilo era duradouro, perene... E além dessa sensação, eu via um sol bem à minha frente... Eu olhava para aquele sol, sem que meus olhos se sentissem feridos. Eu podia fixar meu olhar naquela luz intensa sem nenhum problema. Quando a retina se acostumou pude perceber que a luz tinha uma forma humana, de mulher, mas não pude ver suas feições...

Eu não sentia vontade nenhuma de retornar para o que chamei de “primeira parte do ciclo”, a “última parte do ciclo” era muito acolhedora e prazerosa, mas eu me sentia sugada. Eu tentava me segurar, mas não conseguia permanecer ali porque a força que me tragava era muito maior que a minha.

Percorri aquele ciclo por diversas vezes e lembro que da última, quando voltei definitivamente para esta tal “primeira parte do ciclo” consegui vislumbrar o que acontecia fora de mim, concluindo que o que me puxava para essa realidade eram três vozes que gritavam ensurdecedoramente chamando meu nome: a voz da minha psicóloga, a voz do meu médico e a voz do meu pai. Via aqueles três rostos bastante angustiados ao meu redor e mais uma vez...

...Apaguei.

De novo acordei na UTI. Era o dia exato em que meus colegas colavam grau, enquanto eu terminava o meu último estágio. Impossível esquecer minha emoção quando, ao abrir os olhos, o colega que estava de plantão se aproximou e disse:

– Parabéns “Doutora”!

Pensei: Doutora? Eu? Essa palavra pareceu música aos meus ouvidos. Agradeci com os olhos brilhantes e embaciados. Olhei em meu derredor e pensei: ainda tenho muito o que fazer por aqui! 

E foi assim que cumpri o meu último estágio da graduação: o de “paciente grave”.

Hoje eu concluo que a “primeira parte do ciclo” cheia de opressão, desconforto e mal estar foi necessária, mas agora me sinto livre e feliz ao percorrer a pequena ponte e me permitir seguir em direção à “última parte do ciclo”. Vejo-me caminhando calma e agradavelmente para a Luz. O caminho do resgate à saúde, ao prazer, à VIDA.

Há dias em que podemos retomar certas lembranças. Há horas em que devemos mesmo resgatá-las. Há momentos em que precisamos revivê-las...


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