23 janeiro 2015

Suaves prestações

Por
ANDRÉA PACHÁ
Juíza de Direito
Petrópolis - RJ
http://facebook.com/andrea.pacha1








SUAVES PRESTAÇÕES

— Quem saiu de casa foi ele! Pegou duas malas, não teve coragem de conversar com as crianças. Disse que ia viajar a trabalho e na volta resolvia tudo. Esperei seis meses, sem saber o que fazer nem o que dizer para a família e para os meninos. Telefonei muitas vezes, fui ao escritório dele e nunca fui atendida. Isso pode ser normal, doutora? Doze anos juntos e um homem sai de casa assim?! Nunca pensei que um dia ia ter que passar por isso... “Passar por isso” era precisar ir à Justiça para resolver um problema de natureza tão íntima e pessoal. Aos 37 anos, Antônia jamais se imaginou em escritórios de advogado, ocupada com pagamentos, contas. Casou-se cedo e sempre foi cuidada por Sérgio.

Há quase dois anos o casamento não ia bem, mas para ela, os sinais externos da crise não chegavam aos cartões de crédito, nem às boletas bancárias que, de uma hora para outra, começaram a empilhar sobre o aparador. Sem falar nos telefonemas e oficiais de justiça que não davam sossego. Ela não tinha ideia de como lidar com a avalanche.

Trabalhar e ter independência não foram prioridades dela, mesmo graduada, exem-plarmente, no curso de Psicologia. O projeto de abrir um consultório especializado em crianças, com duas colegas de turma ficou na prateleira, enquanto se encantava com o amor da sua vida, o príncipe e provedor, sonho de consumo de nove entre dez mulheres do seu círculo de amigas.



O casal perfeito, o casamento perfeito, os filhos perfeitos, a casa perfeita. A família margarina e feliz. Não eram fúteis nem superficiais e, embora não se preocupassem com a sobrevivência e experimentassem uma vida de conforto e facilidade, viviam uma relação de afeto verdadeiro. No fluxo que escolheram viver, Antônia acostumou-se ao papel de responsável pelo lar e pelos filhos, enquanto Sérgio trabalhava a maior parte do tempo para permitir que a família usufruísse com tranquilidade dos prazeres materiais.

Certamente o balanço comercial familiar não era uma matemática simples de entender e parece mesmo que ninguém queria, de verdade, saber como era produzido e de onde vinha o dinheiro, desde que não faltasse.

Inúmeras vezes, Antônia assinou documentos bancários e alterações contratuais, sem ler nem sequer uma linha. A confiança em Sérgio era total e o conforto financeiro que experimentavam ao longo de tantos anos era resultado de trabalho diário e de investimentos felizes dos negócios por ele conduzidos.


A debacle foi repentina. Sem aviso prévio, sem sinais de terremoto ou restrições de gastos. Jantavam diariamente juntos, uma rotina incorporada pela família e o espaço para as conversas com as crianças, para a troca das experiências, para o carinho compartilhado em volta da mesa. Com os três filhos no colégio, Antônia anunciou que iniciaria uma atividade profissional.
Naquela noite, evitou aprofundar o assunto, mas não deixou de perceber o enorme desconforto provocado no marido diante do anúncio da decisão. Como sempre, ele não quis conversar e apostou na estratégia silenciosa da qual era adepto. Era quase uma profissão de fé a crença de que o tempo se encarregava de solucionar tudo e que verbalizar insatisfações era uma maneira de aprofundá-las, nunca de resolvê-las.

O acaso encarregou-se da coincidência. Enquanto Antônia fazia planos para o novo trabalho e tentava driblar o que imaginara ser a insatisfação do companheiro, Sérgio passou a chegar mais tarde, sempre depois da refeição familiar. Invariavelmente, os meninos dormiam sem ver o pai.

Ele desconversava, pedia que ela não se preocupasse com os compromissos crescentes no trabalho. A nova rotina, com Sérgio mais ausente, começou a intrigar Antônia.

A aposta das amigas mais próximas era uma amante, sem dúvidas. E se existe alguma ameaça que atinja os órgãos vitais de um rela-cionamento, a dúvida ocupa o primeiro lugar, seguida pela irracionalidade do medo.

Nenhuma amante é mais devastadora do que aquela que nasce na imaginação de quem se sente traído. E o silêncio contaminava a ferida e abria novas chagas em lugares de difícil ou quase impossível cura.

Nas noites em que fingia dormir, percebia a agitação de Sérgio, insone, transitando toda a madrugada entre o quarto e o escritório.Se o medo não tivesse suplantado o amor que cultivaram ao longo de 12 anos, a insônia compartilhada e a lealdade poderiam ter alterado o desfecho triste da relação. Não conversaram. Nem ela falou das suas angústias, nem ele dos próprios problemas que envolviam a derrocada empresarial. Duas ilhas cercadas de lençóis de 400 fios por todos os lados.


E um dia, quando o silêncio transbordou e inundou o quarto, arrastando pelas águas turvas e pela corrente feroz uma família outrora feliz, Sérgio saiu de casa e apenas no Tribunal, reencontrava a mulher de quem cuidou por tanto tempo.
Seis meses e o silêncio apavorado foi o tempo suficiente para Antônia se surpreender, todos os dias, com as notícias que não paravam de chegar. Poderia ter sido comunicada pelo marido, mas soube, pelas cobranças, telefonemas e ameaças que uma granada explodira nas confortáveis contas bancárias do casal. Dívidas acumuladas com agiotas e bancos, projetos megalomaníacos e a incapacidade de lidar com reduções e restrições impostas pelos novos tempos.

Com os bens indisponíveis e com restrições de crédito, Antônia, sócia apenas formal da empresa familiar, não conseguia imaginar por onde começar para conseguir acordar, cuidar das crianças, levar para o colégio, manter a rotina mínima e a casa funcionando enquanto esperava o fim do pesadelo.


— Se fosse outra mulher, acho que eu conseguiria entender e até perdoar, doutora. Mas esconder de mim tudo o que estava acontecendo e, ainda por cima, se esconder de mim e dos filhos, sem nem querer saber como nós estamos vivendo, é o fim! Quem é esse homem que eu achei que conhecia??!
O desespero tinha destinatário. Antônia esperava da Justiça uma solução para a pensão alimentícia dos filhos, mas, o que ela desejava, naquele momento, era ouvir de Sérgio, o que ele não teve coragem de dizer durante todos os últimos anos.

Não deve ser fácil a escolha pelo silêncio. Ele enrubesceu e parecia fazer um esforço físico imenso ao tentar começar a falar. Era como se as palavras fossem de pedra e metal pesado. Subiam, com dificuldade pela faringe, cresciam na boca e sufocavam Sérgio, antes de se transformar em som.

Olhou para o chão, jogou as mãos sobre a mesa e sussurrou:

— Desculpa, Antônia. Eu amo você.

Antônia também amava Sérgio, mas não tinha certeza se queria continuar com aquele homem em quem ele havia se transformado. Chorando, ela disse que a maior traição foi o abandono que sentiu porque ele escolheu excluí-la da sua vida quando ele mais precisava.

— Que amor é esse que mente, joga meu nome na lama e vai embora?

Entre enfrentar o problema, dividir com a mulher a ansiedade, reduzir os custos e encontrar alternativas, Sérgio encolheu porque acreditou que seu relacionamento seria impossível sem a segurança e o conforto garantidos por ele. Como provedor, não conseguia assumir nenhum outro papel.

Insistia em discutir todos os problemas apenas sob o aspecto patrimonial e financeiro. Mesmo com Antônia sinalizando para as possibilidades de reduzir gastos, demitir empregados e mudar para um imóvel menor, a fim de pactuar um acordo possível, Sérgio não conseguia entender que havia caminhos alternativos e possíveis. Não concordava em pagar o colégio e o plano de saúde porque afirmava não ter dinheiro, mas, parado-xalmente, conseguiu formular uma última proposta, quase indecente:

— Vamos voltar, Antônia. Você não precisa se preocupar com esses probleminhas. Mês que vem, os meninos estão de férias. Passamos umas semanas fora, aliviamos a tensão e fica tudo tranquilo. Pode acreditar.

Revoltada, Antônia recusou a oferta. Como era possível uma viagem ao exterior e nenhuma perspectiva para pagar as mensalidades escolares e o condomínio em atraso?

Fixei a pensão possível para o momento que atravessavam. Não sem levar em conta que, quem pode se responsabilizar por uma viagem de férias, ainda que em suaves prestações, pode assumir uma obrigação mais razoável para o sustento dos filhos. É difícil compreender esse mundo improvável, tão bem desenhado por Woody Allen, em Blue Jasmine: pessoas que não têm dinheiro para comprar carne no açougue, conseguem, simulta-neamente, viajar e frequentar restaurantes caros. Para quem paga as contas em dia e vive de salário no final do mês, uma realidade distante e quase fantástica.

Uma pena que Sérgio não tivesse aproveitado o tsunami para chacoalhar o estereótipo que escolheu vestir. Adaptação é sobrevivência. E ainda há quem duvide de Darwin.
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